Uma Ars Moriendi
para os nossos tempos:

Para viver uma vida plena -
para alcançar uma morte tranqüila

Arthur E. Imhof

Tradução do professor Douglas Cole Libby
e revisão de Paulo Henrique Ozório Coelho -
Centro de Estudos Mineiros
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte

© VARIA HISTORIA, nº 15, Mar/96, 28-36

Entre todos os seres vivos, somente os humanos poderiam também se converter em seres mortais sensatos. Para a maioria, no entanto, a conversão à tal sensatez é difícil. Creio que esta dificuldade tem duas causas principais. Em primeiro lugar, nos perdemos a nossa imortalidade. São poucos aqueles que ainda mentêm uma crença inquebrantável na ressureição ou na vida eterna. Em segundo lugar, o lento precesso de morte por etapas, característico da atualidade, torna-se problemático, pois o rol de descendentes tem diminuido dramaticamente, enquanto entre nós muitos não têm filho algum. Desta forma, como é possível que continuemos vivos, ao menos por um tempo, na memória dos nossos sobreviventes, tal como acontecia no passado?

Ademais, a extensa memória coletiva acaba por apagar para a maioria tudo menos as perdas mais recentes. Nã,o obstante, o fato de que não haverá continuidade em outra vida, nem um período de luto se extendendo por várias gerações e dezenas de descendentes, para muitos é inaceitável. Outros se recusam a pensar racionalmente acerca desta situação ou a enfrentá-la. Como é que chegamos a esse difícil estágio? Se se quer mudá-lo e, com efeito, muitos se sentam desconfortáveis com o atual estado das coisas - é preciso saber como chegamos a este ponto. Não basta lamentar a repressão exercida pela sociedade sobre a morte e a mortalidade, enquanto idolatra a juventude e descarta os idosos. Tais reclamações nada mudam. Afinal, somos todos parte desta sociedade. Assim, é preciso começar por nós mesmos se quisermos mudar qualquer coisa que seja.

Com um pouco de reflexão é fácil encontrar as razões que contribuem para este esquecimento. De um modo geral, há o orgulho pelo fato de que a expectativa de vida média dobrou, ou mesmo triplicou, dentro de poucas gerações. Com efeito, para a maioria a vida não dura trinta ou quarenta anos, tal como ainda em meados do século XIX; dura sim setenta, oitenta anos ou até mais. E ainda, pode-se contar com estes anos todos, algo impensável para os nossos antepassados.

O tempo médio de vida não apenas aumentou como atingiu patamares jamais antes alcançados e inexistentes en qualquer região fora do Primeiro Mundo. Comparando com nossos antepassados de um século atrás, cada um de nós possui duas vidas realizáveis: e em relação aos antepassados mais remotos temos três. Quando algo abala prematuramente a saúde, é normal o reestabelecimento rápido. Em nossos "melhores anos", temos o direito de sentirmo-nos quase que imortais. As inúmeras campanhas de prevenção freqüentemente insinuam que, logo, e de fato, a imortalidade será atingível: praticando um pouco mais de cooper, não mais fumando, subindo nos aparelhos que simulam a escadas, consumindo leite de baixo teor de gordura e fazendo exames médicos regulares, seria possível erradicar de vez a morte. No passado as doenças eram carregadas de significados. E eram interpretadas como avisos benignos de Deus de que era tempo de parar e pensar no abandono de uma vida pecaminosa. Os problemas de saúde teriam hoje algum sentido? Com certeza, tais problemas não mais possuem os antigos significados. Não obstante, no mais das vezes estes problemas representam uma oportunidade única na vida frenética do mundo atual para a reflexão interior. Será que tememos nada encontrar dentro de nós?

Paradoxalmente, o que contribui para a esterilidade da morte é sua constante presença na mídia. Os noticiários sempre lidam com a morte dos outros, nunca com a nossa própria morte. De fato, entre nós alguns poucos irão falecer por mortes noticiáveis, por exemplo, em uma queda de avião, durante um terremoto, no colapso de um aranha-céu, no desabamento de uma mina ou durante um ataque terrorista. Mas, mesmo que nossa própria morte venha a ser, muito provavelmente, banal, não poderemos ignorá-la ou considerá-la insignificante. Quem de nós iria querer trocá-la por uma entre as milhões de mortes horríveis inflingidas por mãos humanas durante as duas Geurras Mundiais, em campos de concentração e em prisões, durante bombardeiros e explosões nucleares? Hoje, pelo menos, a maioria falece de morte natural.

A Morte dos nossos tempos se tornou uma presença mais modesta, e durante décadas deixou a vasta maioria em paz - de um modo nunca antes visto e inexistente na maior parte dó mundo - ainda que, um última instância, ela permaneça toda poderosa. Mesmo sobre estas condições totalmente novas continua sendo difícil alcançar um equilíbrio nas nossa vidas, pois o ato de viver significa aceitar a tensão do nascer, crescer e decompor que nos acompanha desde o início. Para alcançar o equilíbrio é preciso não apenas aceitar e suportar esta tensão, mas, também, dotá-la de significados e forma. Tanto para leigos quanto para profissionais de saúde, isto significa aceitar a morte natural no momento certo e não detê-la, o que, tecnicamente em certos casos, já se tornou possível. Na nossa cultura, o velho sonho de uma vida plena remonta aos filósofos da antiguidade. O fato de que, repentinamente, este sonho se realiza cada vez mais para um número maior de pessoas constitui algo totalmente novo. Não é de se surpreender, portanto, que tantos ainda considerem problemática esta realidade.

Se, com se diz, a única vida que temos representa nosso mais valioso bem e se tal vida durava trinta ou quarenta anos num passado não tão remoto, o que fazer com os trinta ou quarenta anos adicionais que hoje possuimos? Nem todos parecem ter a resposta. Certamente, o suicídio é uma realidade em todos os estádios da vida, embora, como apontam os demógrafos da terceira idade e os gerontólogos, sua incidência aumenta na população acima de setenta anos de idade. Anos acrescidos não são necessariamente anos plenos. É preciso preenchê-los de significado. Se alguém gasta toda sua vida interessado em atividades físicas e não por questões espirituais ou culturais, não há razão para surpresas uma vez descoberto um enorme vazio espiritual no momento em qua a potência física diminui e esse alguém não sabe o que fazer com os seus dias, meses e anos adicionais. Tal situação é desnecessária: para evitá-la basta cultivar, ao longo da vida, interesses espirituais e artísticos.

O dilema é o seguinte: a duplicação, ou mesmo a triplicação, da expectativa de vida constitui apenas um lado da moeda. Ao aumento da expectativa de vida terrena, contrapõe-se, ao mesmo tempo, um outro processo. Ao longo das últimas gerações, a vida de modo algum foi prolongada: ao contrário, em função da perda de fé no Além, ela tornou-se infinitamente mais curta. O que significa a duplicação da nossa vida terrena em relação à perda de fé na eternidade?

Diante deste cenário, não é assustador que entre nós muitos passam pela vida, por assim dizer, na contramão e com as costas para a velhice e para a morte, enaltecendo uma juventude que se encontra o mais longe possível da "saida final". Pode-se compreender porque o corpo, enquanto nossa única garantia do que nos resta de vida terrena, encontra-se tão valorizado no momento em que a racionalização tornou a vida após a morte inexistente. Se o nosso corpo acaba, nós também acabamos. Assim, observamos nosso corpo incessantemente, dando-lhe cultivo e cuidados através da musculação e do uso de todas as técnicas possíveis, recursos seguros para o seu perfeito funcionamento. No lugar de enormes catedrais dos nossos antepassados, tem-se hospitais imensos e, no lugar do antigo Deus, deuses vestidos de branco laboratorial. A estes delega-se um mandato de impor rédeas à Morte - aquele que, antes, golpeava indescriminadamente a todos e em todos os lugares - e de por, sob controle, a mortalidade de crianças, mães e adultos. E conseguiram isto com tal nível de sucesso que uma nova fé se consolida, uma nova confiança na imortalidade daquilo que nunca degenera, o triunfo contínuo da cura médica.

Mesmo que a maioria desfrute de todo o tempos de vida que a natureza lhe concede, mesmo assim permanece mortal, o que não se constitui em um problema médico. Aliás, não se trata de um problema e sim uma parte da nossa humanidade. Quem somos nós, entre todos os seres vivos, os únicos a clamar o direito à imortalidade? Se, apesar disto, a ciência médica procurasse eliminar a morte, seria um ato inumano. O problema está na insistência de muitos em teorias de que a ciência médica deve continuar tentando salvar vidas mesmo quando nada mais pode ser feito e, mais importante, quando nada mais deve ser feito. A morte não é uma disciplina dos cursos de medicina e a arte de morrer não faz parte dos estudos médicos. Trata-se aqui de uma vácuo, tanto entre os profissionais quanto entre os leigos, pois instrução na arte de morrer não faz parte obrigatória de qualquer currículo. Neste ponto todos nós estamos sozinhos. Embora todos irão falecer, quase ninguém se prepara na arte de morrer. Como antes era diferente!

Voltemos a segunda metade do século XV. Àquelas alturas as técnicas gráficas já permitiam a reprodução relativamente barata de xilogravuras em grandes quantitdades e, portanto, sua ampla distribuição popular. Havia muito tempo que era tarefa dos clérigos ajudar os moribundos nas suas últimas horas. Existia, porém, um problema, já que durante as freqüentes epidemias - as pragas, o tifo, a varíola e a malária - muitos pessoas morriam ao mesmo tempo. Não havia clérigos suficientes para atender a todos. Ao mesmo tempo, os clérigos sabiam por experiência, tal com os "entes queridos" de qualquer pessoa adoentada, que as doenças contagiosas eram extremamente perigosas. Quem tinha condições de fugir fugia e, quanto mais longe, melhor. Em suma, a morte solitária podia acontecer a qualquer um.

E como foi que nossos antepassados enfrentaram esta situação? Eles apreenderam a morrer, cada um por si, e desde a tenra idade. Mesmo que não pudessem ler, era possível estudar as xilogravuras. De acordo com a visão, então prevalescente, o destino de uma alma freqüentemente era resolvido apenas na última hora de vida terrestra. Pensava-se que as forças do diabo usariam de qualquer recurso para agarrar uma alma prestes a partir. Imaginava-se com facilidade a natureza destas últimas tentações: a da fé, a do desespero ou da impaciência, a da tentação à vaidade, à arrogância e ao materialismo terreno. Quem, na sua última hora, sucumbisse a uma destas terríveis tentações certamente ficaria privado dos esplendores celestiais e iria sofrer a condenação eterna.

As pequenas brochuras pedagógicas sempre consistiram em onze xilogravuras. Em cada quadro o moribundo era representado na cama, um protótipo com cerca de quarenta anos de idade com quem todos podiam se identificar. As xilogravuras numeradas um, três, cinco, sete e nove ilustram as cinco grandes tentações já mencionadas. Terríveis rostos diabólicos cercam o moribundo por todos os lados. Eles mostram ao moribundo seu registro pessoal de pecados e desfilam diante dele todas suas malfeitorias. Tendo praticado o perjúrio, o adultério, a miséria, a bebedeira, a comilança, o roubo ou o homicídio não lhe seria concedida a misericórdia de Deus. Estes rostos diabólicos ainda fariam apelos à vaidade do moribundo, o lisongeariam, recordando-lhe de seus feitos na vida, de suas honras, de seu heroísmo e de sua fama. Far-se-ia menção a todos seus bens com o fim de dístrái-lo das tarefas essenciais para uma morte digna da bênção de Deus.


onze xilogravuras


As imagens correspondentes nas xilogravuras dois, quatro, seis, oito e dez, no entanto, mostram as forças celestiais se apressando em ficar do lado do moribundo: anjos, santos e a Santíssima Trindade. Estas forças o apoiariam na sua luta pela salvação. Com a ajuda delas, ele resistiria cinco vezes. Depois, faleceria. A décima-primeira xilogravura mostra o final feliz. Um anjo se prontificava em receber a alma falecida, na forma de uma pequena criança nua, e de conduzi-la ao esplendor celestial de Deus.

Morrer, a arte certa de morrer, poderia ser apreendida. Se, desde tenra idade, esta Ars bene moriendi era absorvida, esta arte certa de morrer, não haveria o temer à morte, nem à morte solitária. Sabia-se o que esperar na última hora, pois bastava copiar o protótipo das xilogravuras para assegurar a paz eterna.

Como historiador, sempre sou tentado a pensar na maneira pela qual nossos antepassados lidavam com problemas semelhantes aos problemas da atualidade. A semelhança com o passado é nosso ponto de partida. Também entre nós, não há ninguém que tenha certeza de que a sua última hora não será solitária ou carente de ajuda espiritual. Mas quem nos ensina a morrer?

Ninguém é suficientemente ingênuo para sugerir que a antiga Ars Moriendi deveria ser reeditada e distribuída em larga escala para que as pessoas pudessem reapreender a arte certa de morrer. Mas, se se aceita que, mais uma vez, precisa-se de uma Ars Moriendi - como eu firmemente acredito - há algumas boas lições nos velhos quadros da Ars Moriendi.

  • Se o desenvolvimento de uma arte de morrer com larga base social é realmente algo desejável para o mundo contemporâneo, trata-se de uma tarefa exequível. Nossos antepassados de quinhentos anos atrás demonstraram isto.
  • Cada "ars moriendi" é anraizada no seu próprio tempo. A meio milênio esta arte tinha raízes na visão cristã do mundo, na sua crença na Eternidade, na ressureição na última hora, garantindo êxito àqueles que seguiam seus preceitos.
  • Um fator decisivo deste sucesso foi a concentração no essencial. Onze expressivas e compreensíveis xilogravuras bastavam para obter êxito.
  • A "arte de morrer sozinho" se endereçava a todos e, desde muito cedo, ninguém poderia ter certeza de que não teria uma morte solitária no dia seguinte. Assim, a "Ars Moriendi" era, também, uma "Ars Vivendi", uma "arte de viver corretamente".

As infêrencias para a atualidade são as seguintes:

  • Pode-se criar, também para os nossos tempos, uma "Ars Moriendi", se é realmente isto que se quer.
  • Para a maioria de nós a vida consiste apenas em sua parte terrena. O processo de morte sinaliza o capítulo final.
  • Uma "Ars Moriendi" nova e contemporânea tem de ser tão concisa, comovente e universalmente acessível quanto a antiga. Hoje como ontem, a nova versão terá de falar a todos, pois, mais uma vez, ninguém está salvo de uma morte solitária.
  • A mais de meio milênio a "Ars Moriendi" era uma "Ars Vivendi", uma "arte de viver corretamente". Com isto estou sugerindo uma arte de viver a vida terrena tão plenamente que, ao chegar o seu fim natural, não se tenha apego à vida, mesmo sem a esperança de sua continuidade.

Quando se inicia este processo de aprendizagem apenas diante da perda da saúde em face da morte, normalmente é tarde demais. Exatamente com a quinhentos anos, a prática tem de começar na juventude. Esta nova Ars Moriendi não é, portanto, um manual para uso nas unidades de tratamento intensivo, nos asilos ou na casa do moribundo. A palavra de ordem desta Ars Moriendi é "viver plenamente", e fazer isto durante toda a vida e, como resultado, morrer em paz. As últimas semanas, dias e horas não importa como nem onde; não importa qual a doença que me conduz ao fim e não me importa se viver a falecer com ou sem ajuda num hospital, abrigo ou em casa. Vivi minha vida e não apenas me tornei velho. Satisfeito com a vida e nã apenas cansado dela, posso renunciar.

Hoje, se mantivermos um espírito aberto, fica mais fácil encontrar soluções para a situação atual. Trabalhar com espírito aberto significa não apenas tomar nota das cifras enumeradas a seguir, mas também delas tirar conclusões. Em qualquer manual sobre o assunto ler-se-á, por exemplo, que a expectativa de vida média na Alemanha em 1855 era de 37,2 anos, enquanto em 1985 era de 74,6 anos - exatamente o dobro. Não se trata apenas de uma duplicação, pois, em termos qualitativos, o número de "anos melhores" também dobrou. A nutrição é mais segura e de melhor qualidade do que em qualquer período anterior. As doenças contagiosas encontram-se sob controle. O horário de trabalho é a metade daquele dos nossos ancestrais e, geralmente, as condições de trabalho são muito melhores. Fora algumas excepções, o poder aquisitivo aumentou consideravelmente. Como nunca antes e no mundo inteiro estão amplamente disponíveis informações de todo tipo, educação, cultura, estações de rádio e televisão, para não falar na superabundâancia da mídia impressa, além dos museus, das bibliotecas, dos salões de concerto e das universidades.

Será que tudo isto não nos vale nada? Durante dezenas de gerações lutou-se para uma vida longa. Nós a temos. Somos um sonho vivo tornado realidade para a humanidade. Nunca antes tantos se vêem livres da tríade de desgraças: a Praga, a Fome e a Guerra. Não obstante, somos insaciáveis e queremos cada vez mais, tanto qualitativa quanto quantitativamente: mais e melhores anos e, se possível, toda a eternidade também. O que foi que aconteceu com a nossa humanidade e, afinal, com a sua inevitável decomposição?

Uma coisa é certa. O controle atual sobre "praga, fome e guerra" e o inédito aumento resultante da expectativa de vida não são garantidos, nem no plano individual (quantas vezes não se lê nas notícias de óbitos: "por que tão cedo?"), nem no plano da sociedade como um todo. Novas pragas nos ameaçam: a Aids e novas guerras, como a da antiga Iugoslávia. A duração desta situação atual irá depender, em grande medida, da nossa vigilância e das nossa contribuições. A História é repleta de exemplos de estagnação ou mesmo regressão na expectativa de vida. Não pretendo desenhar visões de horror, embora, para alguns dos nossos contemporâneas, tais visões qualifiquem a transição de uma vida insegura para a segura e evoquem uma assombrosa ansiedade que é difícil dissipar. É um erro deixar-se paralisar pelo temor.

O fato é que da atual população alemã de 80 milhões de habitantes, mais da metade nasceu após 1950. Portanto, pela primeira vez, uma enorme parcela da sociedade alemã nunca passou pela experiência da ameaça imediata à vida constituída pela praga, a fome e a guerra que reinaram supremas por milênios. Pela primeira vez, a maioria dessa população se vê diante da inacreditável oportunidade de viver e dar formas à vida com base em uma longevidade quase que incalculável. Isto representa uma oportunidade fantástica para que se elabore um plano de vida. Pela primeira vez, é possivel medir e coordonar as partes fortes e fracas de cada fase da vida. Não mais faz sentido viver a vida de um dia para o outro. Tendo em vista o inevitável enfraguecimento das forças físicas, é importante cultivar, desde cedo, não só os interesses físicos, mas também os intelectuais e culturais - tanto ao nivel individual quanto ao nivel social - para que encontre-se prazer em cada fase da vida, mesmo nos anos finais. Não rotulem minha concepção de vida como demasiadamente intelectualizada. Não é culpa minha se as forças físicas declinam antes das espirituais, especialmente no fim da vida. O que eu posso fazer é me preparar para tanto.

Creio que elaborar um plano de vida faz sentido mesmo para aqueles que são vítimas de acidentes ou doenças incuráveis quando jovens adultos. Para eles, também, tudo terá acentecido na hora certa. Seja quando for a hora da morte, ninguém precisa lamentar-se por ter perdido algo. Não há necessidade de frenéticas tentativas de última hora no sentido de compensar por aquilo que é irrecuperável. "Para viver plenamente - para morrer serenamente" a qualquer idade!

Ainda há entre nós uma minoria considerável que não teve a oportunidade de elaborar, desde cedo, um plano de vida. São aqueles que sobreviveram as duas Guerras Mundiais, a Depressão dos anos 30, e regime de beterraba no inverno e as pragas endêmicas. Face a tais calamidades, como é que poderiam esperar por uma vida longa? Viver em uma era livre da "praga, fome e guerra" e poder contar com uma terceira idade é um fenõmeno recente, e que, hoje, diz respeito a quase todos.

Será que não estaríamos imaginando que a transição de uma expectativa de vida incerta para a certa traria consigo um paraíso terrestre? Apenas os ingênuos ignoram que cada moeda tem duas faces. O aumento da expectativa de vida e "o aumento da expectativa de vida com boa saúde"são duas coisas distintas. Com a reduçã das infermidades contagiosas vive-se mais, o que não significa imortalidade. Os problemas crõnicas de saúde vieram à tona e agora desempenham um novo papel no espectro de causas de doenças e da morte. Quanto mais se chega ao limiar dos oitenta ou noventa anos de idade, maior são as chances da necessidade de cuidados especiais, mesmo antes da institucionalização de tratamentos terminais.

Outra conseqüência da transição do tempo de vida incerta para o certo é a dissolução de formas tradicionais de comunidade. Antigamente, a presença constante de "praga, forme e guerra" forçava nossos antepassados a garantirem sua sobrevivência sujeitando-se a estruturas comunais: a família, o lar, o monastério, a corporação, as forças armadas. Eram comunidades forçadas, não voluntárias. E muitas delas eram horríveis. Tais estruturas comunais não mais se fazem necessárias à nossa sobrevivência. É por isso que crece tanto o número de indivíduos que moram solitariamente e que homens e mulheres preenchem suas necessidades através de arranjos comunais temporários e "se viram" durante e resto do tempo.

Pesemos os fatos. O desenvolvimento, a partir da Segunda Guerra Mundial, tem trazido ganhos positivos, em particular a transição da expectativa de vida incerta para a certa. Temos o dobro de anos, inclusive de anos bons, nosso poder acuisitivo aumentou substancialmente e temos maior acesso ao mundo que em qualquer período anterior. Mas, o mesmo desenvolvimento trouxe algumas mudanças negativas: a ampla perda da fé na eternidade, a evolução, em separado, da expectativa de vida, em si, e da expectativa de vida com boa saúde, com conseqüências tais como doenças prolongadas e o colapso das estruturas comunais, entre outras.

Duvido que alguém gostaria de anular estas mudanças negativas através de uma volta aos terríveis dias da "praga, fome e guerra". Pede-se fazer isto. As velhas doenças contagiosas não foram varridas da face da terra. A fome e a guerra ainda existem. Qualquer um é livre para viajar em regiões infestadas por malária sem a profilaxia adequada, entrar em zonas de fome da África ou da Ásia sem alimentos preservados ou visitar um teatro de guerra. Ele ou ela encontraria a desejada morte prematura e nunca teria de pensar sobre planos de vida ou numa nova Ars Moriendi.

A maioria de nós, no entanto, deseja a vida longa que finalmente se tornou possível e concomitantemente devemos aceitar as negativas. Faça-se o melhor com a vida longa que tanto se deseja e que nos faz um grupo de privilegiados. Transformemos cada um dos nossos anos ganhos em anos plenos, aproveitando dos nossos imensos recursos técnicos, econõmicos e culturais, para, depois, na hora certa, falecer por uma morte natural.

Ser humano, como eu disse no início, significa aceitar e suportar, de maneira deliberada, a tensão com que se entra na vida, a tensão entre vir e ser, ser e perecer. Será que compreender isto é tão difícil? Conciso e breve, como a velha Ars Moriendi, eis o ponto essencial que deve ser entendido por todos.